A porta da rua custa a abrir.
As luvas nas mãos transpiradas escorregam na maçaneta polida e puxam o lustro ao objecto redondo banhado a ouro. Estou demasiado entusiasmado para perder tempo com objectos inanimados.
Seguro a peça esférica com as duas mãos e cerro os dentes. A porta permanece imóvel. Através do vidro vejo que neva lá fora. Nunca nevara nesta altura, nesta cidade. As ruas inundadas de pessoas que parecem agradecer aos céus mais esta dádiva, que apenas faz frio. A porta agita-se com uma bola de neve que embate junto à fechadura, ressaltando pequenos flocos brancos para as minhas botas negras. Foi o pequeno Tomás da casa em frente. Ele e o seu irmão mais novo riem como nunca os vi rir num dia de sol. O interior da fechadura começa a derreter e a água escorre pela pintura que já estalara de manhã. Terei de dar outra demão. Aperto as mãos com mais força e ralho com a maçaneta. Uma das unhas crava-se no dedo mindinho oposto. Ouvem-se gargalhadas vindas da rua. O sol parece reaparecer. O meu cachecol começa a ficar desconfortável com a transpiração que cai do cabelo encafuado no gorro feito à mão pela minha tia-avó num feriado nacional há quase dez anos. O sol sai forte por detrás das nuvens e começa a transformar os amontoados de neve em pequenos rios que escorrem para as sarjetas. Possuído pela cólera, pego no trenó do meu filho e lanço-o contra a merda da porta. Oiço um estalo e vejo que foi o trenó que se partiu. A porta permanece fechada. Sento-me no chão e choro. O sol já vai alto. A neve já não existe. As pessoas voltaram para casa e os carros voltaram para a rua. O meu filho vem ter comigo. Digo-lhe que esteve a nevar enquanto ele esteve a dormir. Queria-lhe fazer uma surpresa. Levá-lo a ver a neve que ele nunca viu. Deslizar no branco vindo do céu. Mas que agora já não há. Que agora só há água porque o sol já derreteu. Ele olha para mim em silêncio. Nos seus olhos começa a chover. Desliga o olhar e foge de mim a correr. Vai a gritar para os braços da mãe. Permaneço no chão junto à porta morta. Um trenó partido. Uma porta fechada. Um par de luvas húmidas. Um filho ausente… e uma unha encravada.
Odeio o Inverno.
2 comentários:
Muito bom como sempre.... continua...
mas não podes odiar o inverno só porque tens o pingo no nariz porque isso acontece-te mesmo no verão....tens de ser mais tolerante e apreciar o frio, vulgo Inverno...:D abraços
É uma verdade! O pingo é uma verdade absoluta!
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