sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Talvez












O que faz um beijo na minha almofada? Tinha-a guardado para a altura certa, para quanto ELA viesse cá a casa, dormir comigo, só dormir, nada mais. Agora vejo que tem um beijo. Pintado de vermelho, como se fosse sangue e não baton. Um vermelho bem vivo, entranhado no tecido. Assim já não a posso usar quando ELA me vier visitar. Tiro-lhe a fronha e ponho-a para lavar. A meio da actividade a máquina dá o berro e começa a cuspir água. Vá de lavar à mão, à moda antiga, com uma barra de sabão. O vermelho custa a sair. O branco tingido vai ficando cor-de-rosa. O rosa alastra-se. As mãos ganham cor. A campainha toca. Era hoje que ELA vinha. O rosa chega-me à face. O ralo borbulha com o escorrer da água. A espuma permanece na bancada da cozinha, como se pertencesse à mobília. Com a fronha corada entre os dedos vou salpicando o chão inundado. Desfaço-me em água junto à porta de entrada. A campainha volta a tocar. É ELA, é ELA, tenho que me despachar. Laço a fronha no estendal. Uma bandeira cor-de-rosa à janela é sinal que lá vem ELA. Limpo as mãos à roupa que também ganha outro tom. Puxo o cabelo para trás. Vejo se o hálito está bom. Cheira a sabão e água raz. Desço as fronhas da camisa e coloco um sorriso sobre a gravata desalinhada. É agora, o tudo ou nada. Destranco a porta com duas voltas e meia. Os trincos giram sobre si até que o monstro blindado se liberta da tensão. Faço o movimento de abertura para mim mas a porta fica presa no chão. O meu sorriso descai ligeiramente, perturbado com a pouca fluência do gesto. ELA do outro lado à espera da minha insistência. Asseguro-lhe que tudo está bem, conforme estava planeado. Transpirando, oiço os saltos dos seus sapatos por todo o lado. Deve estar farta de esperar. Arregaço novamente as mangas para um último gesto de força. Os meus dedos enrugados da água colam-se ao objecto emadeirado. Força, força, penso eu, lembra-te do que está combinado. Finalmente a porta cede, mas abre com tanta força que não evito ficar entalado. Caio no chão, completamente estafado. ELA entra, muito recta, com os seus saltos bem altos. Os meus olhos nem acreditam. Sigo o torneado das pernas, subo a anca e as costas. Perco-me no desenho do pescoço até me deixar apanhar pelos ganchos do cabelo. ELA nunca pára. Segue sempre direita ao quarto. Levanto-me, ainda cambaleante. Levo as mãos à cabeça para tentar ficar equilibrado. Tento manter-me erguido mais do que alguns segundos mas as minhas pernas fraquejam. Volto a cair para o lado. Desta vez permaneço sentado. Talvez amanhã consiga chegar até ELA.

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