segunda-feira, março 20, 2006

Debaixo dos...



















Normalmente, as autobiografias (ficcionadas ou não) chateiam-me. Há qualquer coisa na palavra "auto" que me bloqueia a vontade de ler a biografia. Parece que algo ja está minado à partida e que o autor ou vai evidenciar as suas qualidades para parecer mais capaz do que realmente é, ou vai evidenciar os seus defeitos para produzir o efeito mártir que o consagrará como um herói.
Neste caso, apesar de suspeitar que esta história iria ser mais uma daquelas lamechisses pegadas de tentar arrancar lágrimas à força, decidi comprar o livro, não só pela sua qualidade gráfica, mas pelo interesse inédito que a minha namorada demonstrou por um livro de BD (a importância de partilhar um prazer com a pessoa que amamos é sempre superior a qualquer filosofia). E como devia ser regra em todos os belos gestos que fazemos na vida, este revelou-se compensador.
Depois de ler as mais de 500 páginas "autobiográficas", tenho a dizer que este livro é mesmo bom. Para quem gosta de BD esta graphic novel não é só uma referência em termos técnicos mas principalmente em termos narrativos. E com um sinal à porta que diz: "A lamechisse não entra aqui!". Apesar do autor ainda estar na casa dos 30 anos, esta é uma história privada que vai às profundezas do espírito humano e revela todo o espectro de emoções que definem uma pessoa. Da maldade à amizade, da vergonha à paixão, do medo aterrador ao amor profundo. E realçando esses sentimentos não só pela qualidade das palavras mas também pela qualidade do desenho, como a boa BD deve ser. Desde os traços mais violentos e negros, às forma mais delicadas e quase vazias, este livro é um poço de sentimentos e emoções. E um poço ao qual se consegue ver o fundo, tal é a força da luz.
Este é um retalho de uma vida que ainda vai a meio e que nada tem de extraordinária, mas que devido ao potencial criativo do seu autor e actor principal é um excelente exemplo de "auto"análise, "auto"disciplina e "auto"cumplicidade.
Este é um livro que exige coragem para ser comprado, mas oferece a melhor recompensa que um livro pode dar: um prazer de leitura que permanece na nossa memória, muito depois de virarmos a última página.

3 comentários:

Alexandr3 disse...

Pessoalmente não concordo com biografias (auto ou não) com 30 anos.
Mas o que são 30 anos? uma vida? Muitas vezes nem um terço de uma vida são.

A única excepção seria uma biografia de alguém que morreu com 30 anos. Agora de alguém vivo? E depois aos 50? faz-se outra? E aos 70?

El Felino disse...

Isto é uma autobiografia no sentido de ele aproveitar momentos da sua vida para narrar um romance. É um episódio autobiográfico, não uma história de vida. Talvez por isso me tenha tocado tanto, já que tenho quase a idade do autor e consigo perceber exactamente o que ele sente. E por ele ser tão jovem é que é surpreendente a forma como ele conta a história, sem recorrer a clichês nem cair em fórmulas fáceis. Para além de ser um romance, é também uma história de como um rapaz lida com as barreiras que lhe são impostas, quer físicas, quer mentais, quer morais. A sua fé é posta em causa e a forma como ele lida com isso é exemplar (exemplar no sentido de servir como um exemplo). Dei destaque a este título por não ser só mais um livro, por fugir a esses receios de que uma história contada por alguém tão novo não possa ter profundidade ou relevância. Acredita, é literatura.

Abraço.

LAD disse...

Fiquei curioso...